A ausência de políticas públicas voltadas ao acolhimento dos migrantes e refugiados no Brasil, atrelada à intolerância da sociedade brasileira, foram apontados por senadores e debatedores como motivações que levaram ao assassinato do congolês Moïse Kabagambe, ocorrido no Rio em 24 de janeiro. O debate promovido pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) e pela Comissão Mista Permanente sobre Migrações Internacionais e Refugiados (CMMIR) nesta terça-feira (8) ainda apontou irregularidades nas contratações dessas pessoas no mercado de trabalho brasileiro, que chegam, inclusive, a ser submetidas a condições análogas à escravidão.
Moïse, que chegou ao Brasil como refugiado aos 11 anos de idade, trabalhava informalmente em um quiosque na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. De acordo com depoimento de familiares, ele foi morto enquanto cobrava o pagamento de dois dias de serviço. O corpo do congolês, de 24 anos, foi encontrado amarrado em uma escada, após ter sido espancado.
O presidente da CDH, Humberto Costa (PT-PE), ressaltou que grande parte dos refugiados recorre ao Brasil numa tentativa de escapar de um cenário de perseguição e vulnerabilidade no seu país de origem. No entanto, observou ele, quando os migrantes chegam aqui, se deparam com a ausência de uma política pública de acolhimento e uma sociedade que tem se mostrado “cada vez mais intolerante e preconceituosa”. Segundo ele, a omissão de figuras da segurança pública da cidade do Rio de Janeiro e daqueles que assistiam à agressão a Moïse passivamente mostra o reflexo da atuação do governo e de sua liderança política — que, na opinião do senador, tem patrocinado falas e iniciativas que enfraquecem a luta contra os preconceitos e a violência no Brasil.
— Infelizmente o governo que agora está no poder não nos dá apoio nesta luta. Pelo contrário, enfraquece todo e qualquer mecanismo que possa ser utilizado no combate aos preconceitos que estão enraizados em nossa sociedade e na luta de uma sociedade mais justa e igualitária. Na contramão de muitos países mundo afora, o governo brasileiro está destruindo espaços legítimos que foram construídos para discutir, criar e fiscalizar políticas sociais que visavam, sobretudo, garantir o direito à vida, à dignidade e à liberdade.
A mesma crítica foi reforçada pelo presidente da Comissão Arns de Direitos Humanos, José Carlos Dias, e pela vereadora do Rio de Janeiro Tainá de Paula (PT). Na visão deles, o Brasil vive um cenário de negação dos direitos fundamentais, inclusive desrespeitando a reciprocidade que deveria ser assegurada com a assinatura de acordos internacionais de direitos humanos.
— Nós temos responsabilidade e assinamos essa responsabilidade, nós nos beneficiamos economicamente dos tratados que nós assinamos como signatários em várias nações, com várias comunidades internacionais, e temos contrapartidas sobre isso. E uma das contrapartidas é, obviamente, dar conta dos processos migratórios, e principalmente dos povos refugiados — enfatizou Tainá de Paula ao dizer que não se pode banalizar um crime “bárbaro”.
Presente à audiência por meio de videoconferência, o irmão de Moïse, Djodjo Kabagambe, disse que outras pessoas envolvidas no crime ainda não foram presas. Ele pediu justiça pela morte do familiar e cobrou a liberação das imagens do ocorrido na íntegra.
— Pedimos justiça pelo nosso irmão. Sabemos que tem muita coisa escondida por trás disso, tem mais participantes que não estão presos e que estão sendo protegidos. E a gente está pedindo ajuda de todos, e principalmente da polícia, que possa liberar o vídeo total — pediu.
Até o momento, três homens foram presos pela morte de Moïse Kabagambe.
Procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Lucas Santos Fernandes ressaltou que as pessoas decidem migrar em busca de oportunidades, e que essa expectativa de “nova vida”, na maioria das vezes, vem por meio da promessa de trabalho. Para ele, o caso de Moïse não pode ser avaliado e investigado de forma isolada como um crime de racismo, e sim como acidente de trabalho, por levar em consideração o contexto que engloba o fluxo migratório no país e todas as irregularidades do caso. O procurador explicou que é preciso ir a fundo, investigar e punir as empresas que têm submetido imigrantes a condições análogas ao trabalho escravo.
— O MPT tem atuação focada na cadeia produtiva. Não basta observar quem é o capanga, mas sim quem é o mandante, quem é a grande empresa que está se beneficiando daquela exploração de imigrantes como os venezuelanos, os bolivianos em São Paulo, que é de conhecimento de todos. Grandes empresas se valendo do serviço deles por terceirização, quarteirização, e alegavam nada saber. O que nós chamamos de conveniente cegueira deliberada — disse, ao assegurar que o caso Moïse terá resposta urgente.
O senador Paulo Paim (PT-RS), que preside a CMMIR, concordou com o procurador. Na visão dele, o assassinato do jovem congolês é um caso específico de trabalho escravo, tendo o refugiado sido tratado dessa maneira até a morte. Paim criticou a falta de fiscalização séria para banir esse tipo de violência.
— Foi amordaçado, sufocado, espancado, amarrado e assassinado. Essa é a realidade do nosso Brasil — lamentou.
A estudante da República do Congo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Gaelfie Ngouaka reforçou as denúncias de contratação de migrantes como “trabalhadores escravos” no Brasil. Conforme relatos dela, que também exerce função de estagiária na Secretaria de Saúde de Guaíba (RS) e no núcleo de acolhimento de refugiados da universidade, são frequentes os registros de pessoas nessa situação. Ela disse que a exposição a atos de violência, preconceito e exposição ao medo tem afetado inclusive a saúde mental desses imigrantes.
— O medo faz com que a gente não avance. Porque a sociedade brasileira é racista e Moïse foi um caso que foi filmado e que foi mostrado. Mas quantos que foram mortos e não foram filmados?
O coordenador-geral do Comitê Nacional para Refugiados (CG-Conare) e representante do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Bernardo Laferté, destacou que hoje o maior contingente de imigrantes refugiados no Brasil é de venezuelanos. Ele citou a Operação Acolhida como uma das iniciativas de acolhimento a essas pessoas, citando como principal pilar a estratégia de interiorização. Segundo Laferté, o Brasil possui cerca de 170 mil venezuelanos com autorização de residência definida e 50 mil já realocados no território brasileiro pela operação. O coordenador disse que o comitê está de olho “em toda movimentação” e assegurando também outras medidas, como o visto humanitário ou autorização de residência humanitária para migrantes da Síria, Haiti, Senegal, República Dominicana e Cuba, e dando outras respostas, como o repasse de recursos (R$ 2 milhões) para projetos de integração desenvolvidos pela sociedade civil.
— Isso é inédito e fica como modelo para os anos futuros de exemplo de ação de política pública que a gente pode enfim trabalhar com outras modelagens sem descaracterizar os serviços prestados pela sociedade civil, e dando o mérito que eles merecem e precisam nesse primeiro passo da integração.
O consultor legislativo Henrique Salles apresentou pesquisa da Universidade Livre de Berlim, feita em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que indica um cenário grave de insegurança alimentar em que se encontram esses migrantes. Segundo os dados, houve piora nessa condição com o advento da pandemia de covid-19, o que, para Salles, merece atenção urgente do poder público.
— Por isso propomos a organização de um corredor alimentar ao longo de rotas migratórias, que pode contribuir para diminuir a vulnerabilidade de migrantes e refugiados. Outra iniciativa é proporcionar, inclusive, o retorno de muitos desses refugiados ao seu país de origem, às suas famílias.
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