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De onde vêm as interpretações religiosas para o conflito Israel-Hamas

Entre os posts que mais viralizaram estão aqueles que mencionam o profeta Ezequiel, argumentando que o Antigo Testamento de alguma forma teria previsto o conflito

18/10/2023 às 08h00
Por: Joselio de Sousa Reis Fonte: Correio Brasiliense
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Os destroços de moradia palestina destruída em ataques israelenses no centro da Faixa de Gaza, em 15 de outubro - (crédito: Getty Images)
Os destroços de moradia palestina destruída em ataques israelenses no centro da Faixa de Gaza, em 15 de outubro - (crédito: Getty Images)

Desde a escalada dos conflitos entre israelenses e palestinos, espalharam-se pelas redes sociais brasileiras interpretações religiosas para a guerra, algumas inclusive associando os atentados do Hamas e os ataques de Israel a Gaza a profecias apocalípticas.

 Entre os posts e vídeos que mais viralizaram, por exemplo, estão aqueles que mencionam o profeta Ezequiel, argumentando que o livro do Antigo Testamento de alguma forma teria previsto o conflito.

 A profecia mais mencionada está no capítulo 38 do Livro de Ezequiel, provavelmente escrito no século 6 a.C. Um dos trechos diz: “não é acaso naquele dia, quando o meu povo de Israel habitar sua terra com toda a segurança, que tu te meterás em agitação? Virás de tua terra […], seguido de teu poderoso exército, tua horda imensa de cavaleiros. Atacarás o meu povo de Israel como uma nuvem de tempestade que vem cobrir a terra”.

 A leitura se torna ainda mais complexa porque há uma referência a esse trecho no capítulo 20 do livro do Apocalipse, fundamentando o que seria, dentro da ideia de fim dos tempos, o ataque final à terra de Israel.

 Mas estas profecias não são o único aspecto religioso que busca explicar o conflito que já deixou milhares de mortos e feridos dos dois lados, entre eles, crianças, idosos e mulheres.

 No próprio cerne da guerra estão crenças e locais sagrados de judeus, muçulmanos e também cristãos.

 A seguir, entenda os principais elementos citados por quem classifica o conflito como religioso – no qual o território sagrado é disputado “até as últimas consequências” – e o que diz quem recusa a interpretação de que a disputa seja principalmente religiosa, destacando aspectos territoriais e políticos.

 Profecias não morrem': Ezequiel e Apocalipse

Sobre a visão de que a guerra seria o descrito no livro de Ezequiel, o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, diz que é preciso cautela com a noção de que trechos da Bíblia possam ter antecipado eventos atuais.

 "Quando há o elemento da profecia, é preciso entender que elas têm uma dimensão para atender a uma necessidade imediata [do tempo em que foram feitas]", diz. "Como elas trazem o arcabouço de uma narrativa mais universal, elas acabam persistindo no tempo."

 Por isso, profecias bíblicas muitas vezes soam como se funcionassem para expectativas futuras. "Então, as profecias não morrem, ficam existindo no tempo. Cumpriram uma função em um presente imediato, mas, devido à sua estrutura, podem ser ressignificadas, requentadas e trazidas novamente para qualquer outro momento da história."

 "Deixemos claro que, na tradição hebraica, textos proféticos não versam sobre o futuro", afirma o teólogo e cientista da religião Andrey Mendonça, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). "Os profetas eram pessoas enviadas por Deus para chamar a atenção aos desvios dos mandamentos da Torá, ao arrependimento e ao retorno ao caminho da justiça."

 "Não há ligação teológica, com base na tradição, seja judaica, seja cristã, entre textos sagrados da tradição hebraica e a eventos futuros, numa visão apocalíptica de 'fim dos tempos'", diz.

 Guerra religiosa?

Mas a atual guerra pode ser chamada de religiosa? Moraes e Mendonça dizem que sim. Já o historiador, hebraísta e rabino Theo Hotz pede mais cuidado. Ele também apresenta o podcast Torá com Fritas que é definido como "uma conversa entre amigos sobre temas relacionados ao judaísmo - cultura, religião e história".

 Moraes diz: "É uma guerra religiosa. É uma guerra maniqueísta, onde cada um dos lados se considera representante do bem, cada um se considera imbuído de uma missão de seu deus e, portanto, neste pacote da missão está [a necessidade de] ocupar a terra e eliminar aquele que impede ou que é um obstáculo à sua liberdade religiosa, à sua existência".

 "Diante disso, não há a menor dúvida de que é uma guerra religiosa."

 Mas o teólogo complementa: a religião não é a única motivação. "Há outros elementos: econômicos, políticos, sociais. Mas a fagulha, aquilo que alimenta inicialmente, que enche os homens de sentimentos nobres de martírio, de darem suas vidas em nome de uma causa, esse sentimento é religioso", diz.

 Segundo sua análise, o elemento religioso é a força mais mobilizadora nesse contexto, "o combustível", trazendo outros elementos "a reboque".

 "Aí nem precisa de muita justificativa para poder existir [a guerra], porque as explicações existem por si só", argumenta, citando ideias como lutar "pela ancestralidade, pela tradição, pelo 'meu deus', pelas coisas sagradas".

 Mendonça acredita que, ao menos no estágio atual, "não há como dissociar as questões religiosas" deste conflito. Mas ele elenca que outros fatores também fundamentam a guerra, além da história e da religião. "Há questões geopolíticas, interesses imperialistas de controle de territórios estratégicos em jogo."

 Já o historiador Theo Hotz é um crítico dessa leitura de que o conflito seja de cunho religioso. "A guerra não é religiosa em si mesma. É uma guerra territorial e de sobrevivência, para ambos os lados", diz.

 "O elemento religioso é minoritário, mas é bem maior do lado do Hamas [grupo extremista islâmico], que é um grupo religioso fundamentalista no governo da Faixa de Gaza", afirma.

 "O exército israelense, no entanto, não se vê nem se define como um exército religioso, além do fato de que religiosos ultraortodoxos não servem no exército em Israel", acrescenta o teólogo.

 Para Hotz, o "conceito equivocado de guerra religiosa na região" reverbera porque "é reiterado constantemente pelo Reino Unido" desde tempos atrás — e aqui ele mencionou, no texto enviado à reportagem, a BBC, como um dentre os veículos de comunicação que, segundo ele, corroboram historicamente essa narrativa.

 Sua análise parte da história da região no século 20. Era o Reino Unido quem administrava o território imediatamente antes da criação do Estado de Israel em 1948. Com a partilha do Império Otomano, a partir de 1920 aquela área estava sob a tutela de uma entidade chamada Mandato Britânico da Palestina, que operou por 28 anos.

 Segundo Hotz, já desde a crise do Império Otomano, houve o surgimento “de muitos movimentos nacionalistas na região, todos de fundo político”. Dentre eles, aquele que seria chamado de sionismo, ou seja, “um movimento de emancipação política judaica e estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu”, formado majoritariamente por judeus que viviam na Europa. “Não há um único rabino entre os teóricos da formação do movimento”, destaca o historiador, ilustrando que isto demonstra o caráter não religioso do sionismo. “O advento de religiosos sionistas é tardio. E os poucos rabinos que pessoalmente se tornaram seguidores do sionismo o fizeram por visões de mundo políticas, não essencialmente religiosas.”

 O historiador reconhece que “elementos religiosos vão sendo incorporados ao conflito”, mas enfatiza que eles “não são a origem do conflito”.

 Com a queda do Império Otomano, os britânicos assumiram o controle da região. “[Foi] o Mandato da Liga das Nações para governar por 30 anos o que hoje é o Iraque e a região geográfica palestina, que inclui as atuais Jordânia, Israel, Cisjordânia e Gaza”, contextualiza.

 Hotz recorre a dois conjuntos de documentações para mostrar como a postura do Reino Unido foi dúbia: a McMahon-Hussein Correspondence e a Declaração Balfour, ambas da Primeira Guerra Mundial. De um lado, houve o compromisso britânico de “apoiar e reconhecer a independência árabe na palestina”. De outro, “a criação de um lar nacional para o povo judeu na região geográfica da palestina”.

 “Os britânicos prometeram a mesma coisa para os dois povos”, argumenta Hotz.

 Assim, o mandato exercido na região já começou sob forte pressão. Em 1922, a Transjordânia foi elevada à condição de reino vassalo do Império Britânico, tornando-se Emirado da Transjordânia. “Nesse momento, os judeus entenderam que ‘um reino árabe havia sido criado’ do lado oriental, logo era questão de tempo até que o lar nacional judaico fosse estabelecido no lado ocidental”, explica o historiador.

 O conflito entre os dois povos escalou de vez. E os britânicos, no meio disso tudo.

 É difícil diminuir o peso da religião ao explicar disputas territoriais em uma região onde se localiza a cidade de Jerusalém, sagrada para as três religiões abraâmicas. Para judeus, foi ali que Salomão ergueu o templo a Javé. Para cristãos, foi ali que Jesus morreu e ressuscitou. Para os muçulmanos, foi a partir dali que Maomé ascendeu aos céus.

 Hotz entende que a Europa tende a enxergar o judaísmo meramente como uma religião. “O povo judeu tem sua origina civilizacional na Idade Antiga e desenvolveu várias coisas, entre elas uma religião”, afirma. “Com a perda da soberania judaica na região, lá na época do Império Romano, e com a dispersão desse povo por toda a Europa, as várias características desse povo acabaram diminuídas. O povo judeu acabou sobrevivendo só por causa da prática religiosa, por isso tantos entendem judaísmo como religião apenas.”

 “É uma situação ampla, mas o conflito não é religioso em sua base. Tem elementos religiosos, mas eles não são, de longe, a origem do conflito”, defende ele.

 Era templo, agora é mesquita

O que leva a um ponto oficialmente alegado pelo grupo Hamas como justificativa para os primeiros ataques a Israel: o que o grupo diz ser uma suposta “profanação” da mesquita de Al-Aqsa, localizada em uma colina no coração da cidade velha de Jerusalém.

 A questão é que o local é sagrado tanto para muçulmanos quanto para israelenses.

 Segundo a tradição judaica, foi exatamente ali que foram construídas as duas versões do Templo de Jerusalém, onde ficava a chamada Arca da Aliança, que guardava os mandamentos dados por Deus a Moisés. Após ter sido destruído e reconstruído no ano 515 a.C, o templo foi novamente destruído pelos romanos no ano 70 d.C.

 No século 7, a mesquita de Al-Aqsa foi erguida ali, concretizando a ideia de que é um local sagrado também para o Islã. Segundo os adeptos dessa religião, foi a partir dali que o profeta Maomé foi levado aos céus.

 Toda a Esplanada das Mesquistas, onde está a Al-Aqsa, é controlada pela Jordânia, por meio de uma organização chamada Waqf — em Jerusalém, dirigida por um conselho de 18 membros nomeados.

 “O Waqf permite a entrada de não muçulmanos na esplanada, fora dos horários islâmicos de reza, mas não é possível acessar o interior dos edifícios”, explica Hotz.

 E daí que acabaram ocorrendo as alegadas profanações, no entendimento do Hamas. “De vez em quando, grupos nacionalistas religiosos judaicos tentam subir ao local para rezar ali, o que sempre desperta conflitos e causa distúrbios no local. Muitas vezes o Waqf aciona a polícia israelense, ou o exército, para conter os conflitos.”

 Hotz ressalta que o Rabinato Central de Israel “proíbe terminantemente a ascensão de judeus” à esplanada. “Mas esses grupos o fazem mesmo assim”, pondera.

 “De um lado, houve ali dois templos (judaicos) muito antigos que foram demolidos. De outro, o Islã entende que aquele lugar é sagrado. São duas interpretações sobre o mesmo espaço: tudo vira motivo para conflito”, sintetiza Moraes. “Quem tem razão? É muito difícil arbitrar um processo como este, porque é uma terra disputada palmo a palmo há muitos séculos. Mas o elemento religioso acaba sendo determinante para o comportamento aguerrido.”

 “Movimentos fundamentalistas e extremistas existem em todas as religiões. O grupo terrorista Hamas […] entende que a presença de mulheres, estrangeiros, judeus e todas as pessoas que não professam a sua crença e estilo de vida na mesquita de Al-Aqsa […] estariam profanando o local”, diz Mendonça.

 A 'terra prometida'

No fundo, a raiz dos conflitos está no fundamento, para os praticantes dessas religiões, de que a atual Israel e a região da Palestina histórica seriam terras sagradas. Mas os estudiosos dizem que é preciso deixar claras as diferenças entre a Israel bíblica e a Israel real e atual.

 “Segundo a narrativa bíblica, o próprio Deus prometeu essa terra a Abraão, Isaac e Jacó e seus descendentes. Quando os hebreus, descendentes de Jacó, Isaac e Abraão, deixaram seu cativeiro no Egito, 400 anos mais tarde [por volta do ano 1.300 a.C.], estabeleceram-se nessa terra, onde cresceram como um povo, desenvolveram-se como civilização e expandiram sua cultura e tradições religiosas”, afirma Hotz.

 “Assim que, independentemente da inclinação religiosa, ou não religiosa, de cada judeu ou judia, o fato permanece que neste local teve início a civilização hebraica, o povo judeu”, completa o historiador. “Este povo possui uma história civilizacional comum, além de sua religião, que é apenas parte dessa civilização.”

 O teólogo Moraes enfatiza que “Israel de hoje não é igual a da Bíblia” e “este é um erro absurdo que é cometido”.

 “Lógico que Israel de hoje tenta manter seus vínculos com a do passado, e a manutenção de toda essa estrutura narrativa de autoridade reforça o argumento de que a terra pertence a eles, e por isso eles lutam por ela, e ela foi prometida por Deus”, argumenta.

 Ele afirma que “historicamente falando”, a Israel antiga foi interrompida por volta do ano 700 a.C., quando os assírios invadiram a região. “Sobram duas tribos ao sul, e esse reino do sul acaba caindo também em 586 a.C.”, acrescenta.

 Então essa região acabou sendo dominada por diferentes povos: babilônicos, persas, romanos… No ano de 135 d.C., os judeus remanescentes ali foram expulsos.

 O Estado de Israel seria criado em 1948, em um esforço capitaneado pela Organização das Nações Unidas e apoiado por muitos países, logo após o término da Segunda Guerra e o Holocausto de mais de 6 milhões de judeus pelos nazistas. “A própria religiosidade judaica foi mudando ao longo do tempo…há um período de quase 2 mil anos [entre a expulsão e o retorno] em que este grupo vive fora da chamada ‘terra prometida’”, situa Moraes.

 Hotz, por sua vez, diz que “a Israel de hoje é e [ao mesmo tempo] não é a mesma Israel bíblica”. “É a mesma, por se tratar do mesmo espaço geográfico. E não é a mesma pelo fato de ser um Estado em sua concepção moderna, democrático, majoritariamente laico e não exclusivamente judaico”, define.

 Berço da civilização

A importância dessa região é ancestral. “O Oriente Médio é o palco do desenvolvimento das primeiras grandes civilizações, também chamadas de hidráulicas porque se desenvolveram em torno dos grandes rios Tigre, Eufrates e Nilo”, afirma Moraes.

 Por ali houve uma sucessão de grandes potências da antiguidade, como os povos egípcio, sumério, assírio e babilônico. “Quem dominava essa região, dominava o mundo da época”, diz.

 Foi nesse cenário que apareceu, como uma novidade, um grupo monoteísta naquele mundo cheio de povos politeístas. “São os descendentes de Abraão, que inauguram essa nova forma de experimentar a religiosidade", prossegue o teólogo.

 “Foi Abraão, essa figura mitológica que, segundo a tradição habitava em Ur, hoje território iraquiano, que teria sido chamado por uma divindade para formar um povo que daria origem a nações e uma forma religiosa, o monoteísmo”, diz o cientista da religião Mendonça.

 Séculos mais tarde, com o cristianismo e o islamismo tendo também nascido nessa região — de certa forma, como desdobramentos do judaísmo — os conflitos se tornaram cada vez mais comuns.

 “Dele [do povo formado por Abraão] descenderiam, pela fé, judeus, cristãos e muçulmanos, que influenciaram profundamente o pensamento ocidental”, afirma Mendonça. “Os mitos das tradições monoteístas apontam para aquela pequena faixa de terra onde esses antepassados teriam vivido e experimentado a glória do Deus único.”

 “As três tradições, portanto, têm uma ligação histórico-religiosa com a cidade [de Jerusalém]”, corrobora Hotz. “Para os judeus, ela é a capital política estabelecida pelo rei David e, seu templo, centro de peregrinação religiosa estabelecida pelo rei Salomão. Para a cristandade, Jerusalém é o centro das pregações religiosas de Jesus, lugar onde foi julgado pelos romanos, morto e sepultado, tendo ressuscitado depois disso, conforme a crença cristã. Para o Islã, Jerusalém é a terceira cidade mais sagrada de sua tradição, sendo o lugar de onde, segundo a fé muçulmana, o profeta subiu aos céus.”

 “Todavia, as religiões são uma produção humana”, diz o professor Mendonça. “Assim, em vez de compartilhar o território sagrado, elas o disputam até as últimas consequências.”

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